A publicação da nova Estratégia Global para a Prevenção e Controle da Influenza Aviária de Alta Patogenicidade (IAAP), pelas organizações FAO e WOAH, marca um ponto de inflexão na forma como a comunidade internacional lida com uma das zoonoses de maior impacto sanitário, econômico e ambiental da atualidade. O plano cobre o período de 2024 a 2033, refletindo o esforço iniciado ainda em 2024 para alinhar os países membros com diretrizes modernas e intersetoriais, em consonância com os princípios do “One Health”.
Mais do que uma simples atualização, a estratégia propõe um salto qualitativo, estruturado nos princípios de prevenir, proteger e transformar: prevenir a introdução e disseminação da doença, proteger as cadeias produtivas e a saúde pública, e transformar os sistemas avícolas para torná-los mais resilientes e sustentáveis. Para isso, aposta na articulação entre biosseguridade, vigilância epidemiológica, inovação tecnológica e governança colaborativa. Em essência, trata-se de um esforço multilateral para consolidar cadeias avícolas mais sustentáveis, com menor risco sanitário e maior resiliência frente a pandemias e crises de abastecimento.
Como a Teoria da Mudança estrutura a nova estratégia
A espinha dorsal da Estratégia Global para a IAAP é a Teoria da Mudança, uma metodologia de planejamento que descreve de maneira lógica e estruturada, como e por que uma intervenção específica deve levar à mudança desejada em um determinado contexto. Mais do que apenas listar ações, a Teoria da Mudança explicita as suposições, condições e fatores externos que influenciam o sucesso da estratégia, permitindo antecipar riscos, ajustar rumos e avaliar se os objetivos finais são realistas e alcançáveis. Sua lógica fundamental se organiza em quatro componentes sequenciais: recursos; atividades; resultados e impactos.
Os recursos essenciais que sustentam a Estratégia Global para a IAAP incluem um conjunto integrado de elementos estruturais. Em primeiro lugar, destacam-se as normas e diretrizes internacionais atualizadas, que estabelecem protocolos mínimos para prevenção, vigilância e resposta sanitária, oferecendo uma base harmonizada para a atuação dos países. Complementando essa base normativa, a estratégia enfatiza a necessidade de infraestrutura laboratorial de ponta e sistemas integrados de notificação de doenças, fundamentais para garantir a detecção precoce de focos infecciosos e a resposta rápida a emergências zoossanitárias.
A capacitação contínua de profissionais é outro pilar central, abrangendo médicos veterinários, agentes de defesa sanitária animal, laboratoristas e técnicos de campo, de modo a fortalecer a competência técnica nas frentes de vigilância, diagnóstico e contenção da doença. Finalmente, a estratégia reconhece a importância dos instrumentos financeiros e da assistência técnica, essenciais para assegurar a continuidade das ações propostas, sobretudo em contextos de alta vulnerabilidade econômica, onde a limitação de recursos poderia comprometer a eficácia das intervenções. Sem esses recursos adequadamente estruturados e sustentáveis ao longo do tempo, a estratégia corre o risco de ser apenas declaratória, sem efetividade prática.
As atividades constituem o conjunto de ações práticas que mobilizam os recursos disponíveis e estabelecem a conexão direta entre o planejamento estratégico e a execução operacional. Entre as principais atividades propostas pela estratégia, destaca-se o fortalecimento da biosseguridade nas propriedades avícolas, com a implementação rigorosa de barreiras sanitárias, protocolos de controle de acesso, higienização sistemática de veículos e equipamentos, monitoramento contínuo de aves sentinelas e a segregação criteriosa de lotes, minimizando os riscos de disseminação viral.
Outra ação prioritária é a implementação de programas de vacinação estratégica, incluindo a avaliação criteriosa do uso de vacinas DIVA (Differentiating Infected from Vaccinated Animals), fundamentais para reduzir a carga viral sem comprometer a rastreabilidade sanitária internacional. Soma-se a isso o aprimoramento dos sistemas de vigilância epidemiológica, tanto ativa quanto passiva, promovendo a integração efetiva de dados de saúde animal e humana e fortalecendo a abordagem One Health.
A estratégia também prevê a realização de campanhas de conscientização e educação sanitária, voltadas à formação de uma cultura sólida de responsabilidade coletiva em todos os segmentos da cadeia produtiva. Por fim, contempla-se o desenvolvimento e a execução de planos de contingência e resposta rápida, com a realização de simulações periódicas e treinamentos voltados à preparação para emergências zoossanitárias. Todas essas atividades são interdependentes e demandam uma coordenação articulada e eficiente entre os diferentes atores públicos e privados envolvidos no sistema de sanidade avícola.
A execução consistente das atividades previstas na estratégia gera resultados mensuráveis de curto e médio prazo, essenciais para monitorar o progresso e a efetividade das ações implementadas. Entre esses resultados, destaca-se a redução da incidência e disseminação de surtos de IAAP, especialmente em regiões de elevada densidade avícola, onde o risco de propagação é mais acentuado. Observa-se também a elevação da capacidade diagnóstica, com a disponibilização de testes mais rápidos, sensíveis e específicos, capazes de garantir uma resposta sanitária ágil e precisa.
Outro resultado importante é a ampliação da adesão dos produtores às boas práticas de biosseguridade e vigilância, alcançando tanto grandes integrações industriais quanto pequenos e médios avicultores, o que é fundamental para garantir a homogeneidade dos níveis de proteção sanitária em toda a cadeia. Por fim, a estratégia busca a harmonização das normas e procedimentos sanitários entre diferentes países, promovendo a fluidez do comércio internacional de produtos avícolas e reduzindo barreiras sanitárias injustificadas. Esses resultados intermediários são fundamentais para avaliar se a estratégia está efetivamente no caminho certo para atingir seus objetivos estruturais e transformar o cenário global de sanidade avícola.
O conjunto de resultados alcançados, se devidamente sustentado ao longo do tempo, é capaz de gerar impactos transformadores de longo prazo, em total alinhamento com os objetivos mais ambiciosos delineados pela estratégia. Entre esses impactos, destaca-se o fortalecimento da resiliência da cadeia avícola global, reduzindo sua vulnerabilidade a choques sanitários e econômicos e garantindo maior estabilidade frente a crises futuras. Além disso, a estratégia busca a redução efetiva do risco de transmissão zoonótica da influenza aviária para humanos, contribuindo de maneira direta para a proteção da saúde pública mundial e reforçando os princípios do conceito One Health.
Outro impacto esperado é a estabilidade e a expansão do comércio internacional de produtos avícolas, com menor incidência de embargos sanitários e interrupções de mercado, elementos fundamentais para a segurança alimentar e a prosperidade econômica de países exportadores. Por fim, a estratégia pretende a consolidação do conceito de One Health como prática efetiva, transcendendo sua aplicação meramente teórica e promovendo uma integração real e funcional entre saúde animal, humana e ambiental. Contudo, a concretização desses impactos dependerá de um compromisso contínuo, de investimentos sustentados e da capacidade de adaptação dinâmica aos novos cenários epidemiológicos que inevitavelmente surgirão no panorama global.
Do Conceito à Prática: O que a Nova Estratégia Ainda Precisa Entregar
A nova Estratégia Global para a IAAP apresenta avanços importantes ao incorporar a vigilância baseada em risco como eixo central de suas ações. A proposta de integrar os sistemas de saúde animal e humana, com protocolos de resposta rápida, reforça o compromisso com o conceito de One Health. Contudo, essas boas intenções esbarram em limitações práticas: ainda carecemos de plataformas interoperáveis de dados que possibilitem a troca ágil e segura de informações entre países e setores. A ausência de padronização de indicadores epidemiológicos globais dificulta a comparação de riscos e a coordenação de respostas. Da mesma forma, embora a estratégia mencione tecnologias emergentes — como inteligência artificial, big data e sensores inteligentes —, não define orientações claras para sua adoção efetiva, o que compromete sua aplicabilidade no curto prazo.
No campo zoossanitário, a ênfase na biosseguridade como primeira linha de defesa é um ponto positivo e necessário. A adoção rigorosa de medidas de controle de acesso, higienização de veículos e segregação de lotes são instrumentos reconhecidos para a contenção da influenza aviária. Entretanto, a estratégia adota uma postura conservadora no tocante à vacinação. Apesar de reconhecer o potencial das vacinas para reduzir a circulação viral, evita detalhar planos operacionais para vacinação em larga escala e não avança na regulamentação de vacinas DIVA (Differentiating Infected from Vaccinated Animals), que são essenciais para manter a rastreabilidade sanitária em países exportadores.
Essa lacuna é crítica. A vacinação bem planejada poderia se tornar uma ferramenta poderosa para controlar surtos, especialmente em regiões endêmicas, onde o simples abate sanitário já não é suficiente para erradicar o vírus. No entanto, persistem barreiras comerciais internacionais: muitos mercados ainda impõem restrições à importação de produtos oriundos de animais vacinados, temendo riscos de detecção e interpretação equivocada de infecções. A estratégia global deveria enfrentar essa realidade de forma mais proativa, propondo protocolos internacionais de certificação de produtos vacinados e campanhas de esclarecimento junto às autoridades sanitárias e consumidores globais.
Outro ponto tratado de maneira superficial é a implementação de medidas como a compartimentalização, rastreabilidade e gestão eficiente de zonas sanitárias. Embora reconhecidas como ferramentas fundamentais para a manutenção do comércio em situações de crise, essas ações carecem de detalhamento operacional na estratégia, o que limita sua eficácia prática.
Além dos aspectos epidemiológicos e zoossanitários, a estratégia também deixa lacunas relevantes em outras dimensões estruturais. Na saúde pública, a falta de integração operacional real entre os sistemas de vigilância animal e humana fragiliza a detecção precoce de variantes virais com potencial zoonótico. Na esfera da economia sanitária, não há previsão de mecanismos concretos de compensação financeira, incentivos fiscais ou esquemas de seguro específicos para emergências zoossanitárias, o que desestimula a adesão voluntária dos produtores às práticas recomendadas.
A gestão de riscos, por sua vez, carece de arquitetura clara: faltam níveis graduais de alerta sanitário, protocolos de contenção proporcionais à gravidade dos surtos e estratégias robustas de comunicação pública, essenciais para a manutenção da confiança da sociedade durante eventos críticos. A dimensão ambiental também é pouco explorada. O impacto de práticas como abate sanitário em massa, incineração de carcaças e descarte de resíduos contaminados no solo e nos recursos hídricos deveria ser abordado com diretrizes específicas de mitigação e sustentabilidade.
Por fim, a inclusão social é uma preocupação ausente. Pequenos e médios produtores, que representam parte significativa da produção avícola em muitos países, continuam sem apoio técnico e financeiro adequado para atender às exigências sanitárias internacionais. Sem mecanismos claros de inclusão produtiva, capacitação diferenciada e acesso a crédito, corre-se o risco de aprofundar desigualdades e concentrar ainda mais a produção em grandes conglomerados agroindustriais.
Em síntese, embora a estratégia avance em muitos aspectos técnicos, seu sucesso dependerá da capacidade de superar essas lacunas estruturais. Para ser efetiva, ela precisa ir além do plano normativo, incorporando soluções práticas, integradas e sensíveis às realidades epidemiológicas, econômicas, ambientais e sociais dos diferentes países e regiões.
Entre a teoria e a prática: o desafio da implementação efetiva
A eficácia da Estratégia Global para a IAAP não se medirá pela qualidade de seus conceitos, mas sim pela capacidade dos países em traduzi-los em prática concreta. A experiência histórica da sanidade animal internacional demonstra que planos bem formulados tendem a fracassar quando não há capacidade operacional instalada, apoio político consistente ou financiamento sustentável para sua execução. Transformar diretrizes globais em mudanças reais exige muito mais do que adesão formal aos documentos internacionais. É necessário construir uma base sólida que inclua investimentos contínuos em infraestrutura física e tecnológica, modernização dos laboratórios de diagnóstico, e fortalecimento dos sistemas de vigilância epidemiológica com foco em integração e detecção precoce.
O sucesso da estratégia dependerá também de um engajamento multissetorial genuíno, que vá além da participação protocolar. É fundamental que governos, setor privado, pesquisa e sociedade civil organizem espaços permanentes de diálogo, colaboração e ação conjunta. Sem esse ecossistema de cooperação, as ações tendem a ser fragmentadas e ineficazes. Outro pilar crítico é o monitoramento rigoroso, baseado em indicadores claros e mensuráveis. A avaliação contínua do progresso é o único meio de corrigir desvios de rota em tempo hábil e garantir que as ações mantenham sua aderência aos objetivos estratégicos estabelecidos.
Além disso, a implementação da estratégia requer solidariedade internacional concreta. Sem apoio financeiro e técnico voltado para países com menor capacidade instalada, as desigualdades sanitárias globais tenderão a se aprofundar, colocando em risco a eficácia coletiva da iniciativa. No contexto brasileiro, a nova estratégia global representa uma oportunidade singular para reafirmar a liderança do país no cenário avícola mundial. Para isso, será crucial ampliar e modernizar os sistemas de vigilância, investir em pesquisa aplicada e inovação tecnológica, fortalecer a biosseguridade nas granjas e consolidar a governança sanitária em todos os níveis da cadeia produtiva — da produção primária ao comércio internacional. O Brasil, dada sua relevância estratégica, não apenas pode, como deve, liderar a aplicação prática dos princípios da nova estratégia, mostrando ao mundo que é possível combinar sanidade, produtividade e responsabilidade internacional.
Conclusão: entre a intenção e a realidade
A Estratégia Global para IAAP 2024–2033 é, sem dúvida, um avanço indispensável para o futuro da sanidade avícola mundial. No entanto, seu valor real será medido pela capacidade dos países de implementar suas propostas de forma efetiva no dia a dia das granjas, laboratórios, sistemas de vigilância e políticas públicas.
Em tempos de incerteza sanitária, instabilidade comercial e crescentes pressões sobre a produção de alimentos, investir em sanidade avícola deixou de ser uma escolha técnica — tornou-se uma estratégia vital de sobrevivência econômica, de proteção da saúde pública e de liderança no comércio global.
O futuro da avicultura mundial dependerá menos da existência de boas estratégias e muito mais da coragem e competência para implementá-las.