O primeiro surto de gripe aviária em uma granja espanhola em mais de dois anos não apenas ativou todos os protocolos sanitários, como também atingiu um ponto crucial que o país acreditava estar fechado: a vulnerabilidade estrutural de um modelo de produção intensiva que coexiste, perigosamente, com ecossistemas frágeis e mal protegidos.
Segundo a Rede de Alerta em Saúde Veterinária (Rasve), a confirmação, na última sexta-feira (18), de um surto de gripe aviária de alta patogenicidade (H5N1) em uma granja de perus no município de Ahillones (Badajoz) faz a Espanha retornar a um estado de crise sanitária que parecia superado desde 2023.
Com aproximadamente 7.000 perus afetados e uma granja vizinha que já iniciou o abate preventivo de outros 5.000, o país perde oficialmente o status de livre de gripe aviária junto à Organização Mundial da Saúde Animal. Este não é apenas um problema veterinário ou econômico. O reaparecimento do vírus em aves — após semanas de detecções em animais selvagens da mesma região — abre um debate urgente sobre os riscos reais de um modelo agroalimentar que mantém milhares de animais em densidade máxima, sem margem real de proteção contra ameaças externas. Por quanto tempo um sistema baseado na produção em massa pode resistir quando a natureza responde?
Só na semana passada, foram detectados dois surtos de gripe aviária em gansos selvagens em Corte de Peleas (Badajoz) e Casar de Cáceres (Cáceres). Especialistas apontam estas aves como a possível via de entrada do vírus na granja Ahillones. Mas o fato de o vírus circular livremente por lagoas urbanas e chegar a instalações sanitárias de alta segurança deveria ser suficiente para deixarmos de falar em coincidência. A questão não é se este surto poderia ter sido evitado, mas sim porque continuamos a tropeçar no mesmo ponto cego.
A Espanha não está sozinha neste cenário. Nos últimos meses, a disseminação do vírus H5N1 cruzou barreiras antes impensáveis, atingindo mamíferos marinhos e vacas leiteiras nos EUA, e até mesmo causando infecções humanas isoladas. Essa evolução não apenas expande o alcance das espécies afetadas; também aumenta o risco de uma mutação que poderia adaptar o vírus à transmissão entre humanos. O caso de Ahillones deve, portanto, ser entendido como um sintoma de algo mais profundo: um equilíbrio cada vez mais frágil entre a indústria e o meio ambiente, entre a pecuária intensiva e a saúde pública. Não se trata apenas de isolar surtos e destruir animais. Trata-se de redesenhar a maneira como produzimos alimentos, gerenciamos a terra e protegemos a biodiversidade.
Este surto destaca a falta de proteção contra uma ameaça que se torna mais presente a cada ano. A resposta social tem sido imediata — imobilização, zonas de vigilância, destruição de carcaças, ração animal e restos biológicos —, mas só reage quando o vírus já cruzou barreiras. A prevenção continua sendo o calcanhar de Aquiles. Além disso, milhares de aves abatidas em poucas horas representam um impacto econômico e emocional para os produtores. Representam também um golpe adicional à já fragilizada percepção pública da segurança alimentar. Os consumidores estão vendo a crise sanitária voltar a se infiltrar em seus pratos, mesmo sem risco direto.