O governo Biden, de olho no surto de gripe aviária que levou à morte dezenas de milhões de galinhas e vem aumentando o custo dos ovos – sem mencionar o aumento do espectro assustador de uma pandemia humana – vem avaliando a possibilidade de implantar campanha de vacinação em massa para aves comerciais, de acordo com funcionários da Casa Branca.
O surto de gripe aviária, que começou no início do ano passado, é o maior da história do país, afetando mais de 58 milhões de aves criadas em 47 estados, bem como aves selvagens. Ele já se espalhou para mamíferos, como martas, raposas , guaxinins e ursos , levantando temores de que o vírus que o causa, conhecido como H5N1, possa sofrer mutação e começar a se espalhar mais facilmente entre os humanos.
Especialistas dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças, cujo foco é a saúde humana, dizem que o risco de uma pandemia é baixo. Porém, por precaução, a agência já enviou aos fabricantes de medicamentos amostras do vírus da gripe que poderiam formar a base de novas vacinas humanas. O CDC também está verificando se os fabricantes de testes comerciais estariam dispostos a desenvolver testes para o H5N1 semelhantes aos usados para o coronavírus.
Infecções por gripe aviária em humanos são raras, como rara é a transmissão entre humanos. Em todo o mundo, houve nove casos de H5N1 relatados em pessoas desde o início do ano passado, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. No Camboja, uma menina de 11 anos morreu recentemente de H5N1 e seu pai também foi infectado, embora o vírus seja uma versão diferente da que circula atualmente em aves nos Estados Unidos.
Os casos geralmente envolvem pessoas expostas a aves domésticas. Nos Estados Unidos, o CDC, em parceria com os departamentos de saúde pública estaduais e locais, está monitorando as pessoas expostas ao H5N1. Até a semana passada, 6.315 pessoas haviam sido monitoradas; 163 sintomas relatados; e um deu positivo, de acordo com o Dr. Tim Uyeki, diretor médico da divisão de influenza do CDC.
Ao mesmo tempo, funcionários do Departamento de Agricultura (USDA), responsável pela saúde dos animais de produção, dizem que começaram a testar potenciais vacinas para aves e iniciaram discussões com líderes da indústria sobre um programa de vacinação em larga escala contra a gripe aviária para aves – o que, se confirmado, ocorrerá pela primeira vez nos Estados Unidos.
As criações comerciais já são vacinadas contra doenças infecciosas das aves, como a varíola aviária. Mas um programa de vacinação contra a gripe aviária seria um empreendimento complexo, e as associações representativas do setor estão divididas sobre a ideia, em parte porque pode gerar restrições comerciais capazes de afetar a exportação, um setor de US$ 6 bilhões. A Dra. Carol Cardona, especialista em saúde aviária da Universidade de Minnesota, comenta que o medo de proibições comerciais é enorme barreira para a vacinação em massa de aves.
“O comércio representa uma guerra não declarada”, afirma a Dra. Cardona.
Especialistas em gripe aviária, no entanto, dizem acreditar que o governo Biden deve prosseguir com uma campanha de vacinação, em parte para reduzir o risco de uma pandemia humana. Vários entrevistados pedem que o governo aja rapidamente.
“Na minha opinião, nas atuais circunstâncias, deveríamos vacinar toda a população avícola dos Estados Unidos contra o H5N1 – com certeza”, declara Robert G. Webster, especialista em gripe aviária do St. Jude Children’s Research Hospital em Memphis. Tal campanha pode “impedir a transmissão inevitável para humanos”, diz ele.
Para o presidente Biden também há questões políticas a serem avaliadas. Os preços dos ovos, que dispararam em 2022, fecharam janeiro último com um preço 70% superior ao de um ano atrás. Essa alta de preços deu aos republicanos outra oportunidade de atacar Biden sobre a inflação justamente quando ele se prepara para concorrer à reeleição em 2024.
Especialistas dizem que os preços dos ovos podem continuar subindo durante a primavera, impulsionados em parte pela demanda da Páscoa, mas também pela escassez de oferta ligada ao surto de gripe aviária. E o surto pode piorar nos próximos meses, quando as aves selvagens começarem suas migrações na primavera, trazendo o vírus com elas.
Funcionários da Casa Branca, falando sob condição de anonimato para descrever as deliberações internas, disseram que estão observando as flutuações de preços de perto. Se uma campanha de vacinação pudesse fornecer alívio econômico para as famílias, Biden certamente estaria interessado em tal empreendimento, disse um funcionário.
Os especialistas há muito temem que uma versão da gripe aviária adaptada para humanos possa desencadear uma pandemia global. Por esse motivo, os Estados Unidos e o mundo precisam fazer mais para se preparar, disse James Krellenstein, consultor da Global Health Strategies, uma empresa de consultoria internacional.
Krellenstein e Garrett Wilkinson, especialista em política de saúde da organização sem fins lucrativos Partners in Health, examinaram o estado de prontidão do mundo para uma pandemia de H5N1 e identificaram várias “lacunas importantes”, de acordo com um relatório que compartilharam com o The New York Times. Com um regime de duas doses, os Estados Unidos podem precisar de pelo menos 650 milhões de doses da vacina H5N1 para uso em humanos. E não está claro como o país poderia atingir esse volume com sua atual capacidade de produção.
“Embora seja extremamente importante que esforços profundos sejam desenvolvidos para controlar o surto em aves domésticas e selvagens, a realidade da situação é séria o suficiente para que tomemos mais medidas para nos prepararmos para um possível surto humano desse vírus”, disse Krellenstein em uma entrevista, acrescentando: “Deveríamos encarar isso como uma simulação ao vivo contra incêndios”.
Antes da Covid-19, muitos especialistas previam que a próxima pandemia seria causada pela gripe. Em 2020, o Departamento Federal de Saúde e Serviços Humanos publicou uma estratégia de 10 anos visando manter atualizada a produção de vacinas contra influenza. Mas à luz do atual surto entre aves, o governo Biden começou a revisar o documento – aponta um funcionário da Casa Branca
O passo inicial em direção à preparação para uma pandemia seria uma campanha de vacinação de aves, concordam muitos especialistas .
“O simples fato de a disseminação do vírus ser minimizada reduziria a exposição aos humanos”, disse Anice C. Lowen, virologista de influenza da Emory University, acrescentando que um esforço de vacinação “também reduziria o potencial de evolução viral” capaz de permitir que o vírus adquira eficiência na disseminação, espalhando-se de pessoa para pessoa.
Atualmente, os regulamentos federais não autorizam a vacinação de aves contra cepas altamente infecciosas da gripe aviária como o H5N1, esclarece Mike Stepien, porta-voz do Departamento de Agricultura. Embora existam várias vacinas licenciadas, não está claro se alguma delas é eficaz contra a cepa atual, disse ele.
Cientistas do Departamento têm trabalhado internamente no desenvolvimento de vacinas candidatas, revela Erica Spackman, microbiologista pesquisadora do Serviço de Pesquisa Agrícola da agência e integrante do grupo de cientistas que lideram os testes de vacinas para aves. A Dra. Spackman e seus colegas pretendem testar várias vacinas em potencial – incluindo aquelas já licenciadas e as novas vacinas candidatas – em galinhas, perus e patos domésticos, disse ela.
Se as vacinas existentes se mostrarem eficazes, elas poderão ser implantadas mais rapidamente do que as novas vacinas. Normalmente, o processo de aprovação de vacinas para animais pode levar até três anos, embora Stepien tenha dito que o prazo pode ser encurtado em caso de emergência.
A Dra. Spackman estimou que ela e seus colegas provavelmente não terão seu primeiro conjunto de resultados pronto para compartilhar até maio. “E persistirá sempre, no âmbito da produção, a questão da rapidez com que a empresa poderá realmente produzir e fornecer a vacina”, acrescenta ela.
Além da ciência, há considerações econômicas. Os Estados Unidos são o maior exportador mundial de produtos avícolas, e seus parceiros comerciais querem garantias de que não estão importando carne de aves infectadas. A vacinação pode tornar mais difícil provar que as aves não foram afetadas pela doença.
Como a maior parte das exportações avícolas norte-americanas está representada pela carne de frango, não será surpresa o National Broiler Council (NBC), representante do setor, se opor à vacinação, comenta Amy Hagerman, economista agrícola da Universidade Estadual de Oklahoma.
“Embora a proposta seja aparentemente atrativa e propicie solução imediata para um problema generalizado, a vacinação não é solução tão simples”, retruca Tom Super, Vice-Presidente Sênior de Comunicações do NBC, explicando que o setor exporta 18% de sua produção e que perder esse mercado custaria “bilhões e bilhões de dólares”.
Porém, o setor de perus – mais duramente atingido pelo vírus, mas exportando apenas 9% de sua carne – está aberto à vacinação. “Reconhecemos que a vacinação unilateral terá um impacto severo nas exportações”, disse Joel Brandenberger, presidente da National Turkey Federation (NTF). “Ao mesmo tempo, instamos e continuamos a instar o governo federal a agir o mais rápido possível no intuito de desenvolver novos acordos com os parceiros comerciais”.
Um punhado de países nos quais a gripe aviária é endêmica, incluindo China, Egito e Vietnã, já vacina rotineiramente o plantel avícola contra a doença. Normalmente as vacinas são injetadas individualmente nas aves e requerem mais de uma dose, comenta o Dr. Leslie Sims, consultor veterinário internacional na prevenção e controle de doenças zoonóticas residente na Austrália.
“Embora o custo varie, pode chegar a alguns centavos por dose”, acrescenta.
Ainda assim, até mesmo os defensores da vacina reconhecem que uma campanha de vacinação em massa não será um processo rápido. Os Estados Unidos produzem mais de nove bilhões de frangos por ano apenas para carne. Uma instalação de produção de ovos contendo cinco milhões de poedeiras pode levar dois anos para vacinar um volume de aves suficiente para atingir altos níveis de imunidade da população, cita o Dr. Cardona.
Alguns críticos já levantaram a preocupação de que a vacinação possa reduzir a gravidade da doença nas aves sem interromper a transmissão, o que permitiria uma disseminação assintomática e sem detecção do vírus, ao mesmo tempo que estimularia o surgimento de novas variantes imuno-evasivas. Mas Richard J. Webby, especialista em gripe aviária do St. Jude Children’s Research Hospital, afirma que “não há muitas evidências disso, pelo menos em um programa de vacinação de qualidade”.
Qualquer que seja o caminho que os Estados Unidos tomem, diz o Dr. Webby, o vírus provavelmente se tornará endêmico em aves selvagens na América.
“Essa coisa”, enfatiza, “está aqui para ficar”.