Influenza Aviária de Alta Patogenicidade: Reflexões sobre o exercício de depopulação de aves e descarte de carcaças realizado em Bastos/SP

Por Luciano Lagatta, para a coluna do OvoSite

Entre os dias 8 e 13 de junho de 2025, o município de Bastos/SP sediou um exercício técnico nacional de resposta a uma potencial emergência zoossanitária envolvendo a Influenza Aviária de Alta Patogenicidade (IAAP), oficialmente reportado à Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA). Com foco em dois pilares críticos, depopulação de aves e descarte de carcaças, a iniciativa foi coordenada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e pela Defesa Agropecuária do Estado de São Paulo, com o apoio do Sindicato Rural de Bastos (SRB), da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de São Paulo (FAESP) e da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA).

As atividades foram conduzidas pelos consultores internacionais Dan Hougentogler, especialista em depopulação em cenários de emergência zoossanitária, e Gary Flory, referência global em descarte de carcaças e gestão de resíduos agropecuários. O exercício contou com a participação de médicos veterinários do MAPA, dos Serviços Veterinários Estaduais e da iniciativa privada, além de representantes do setor produtivo e de produtores locais.

Mais do que um treinamento, o exercício representou um marco estratégico para a avicultura nacional, tanto pela complexidade dos testes práticos realizados quanto pela oportunidade ímpar de avaliação técnico-operacional em um cenário realista e de alta densidade avícola.

O papel estratégico da depopulação no controle de focos 

A depopulação, para o especialista Dan Hougentogler, consultor com vasta experiência em emergências zoossanitárias nos Estados Unidos, Europa e Ásia, não é apenas uma medida de erradicação, mas uma barreira epidemiológica fundamental no combate à Influenza Aviária de Alta Patogenicidade. O tempo entre a confirmação do foco e a execução da eliminação das aves é o intervalo mais crítico para o controle da disseminação viral.

Nesse sentido, a depopulação deve ser tratada com a mesma urgência e precisão de uma medida de contenção de alto risco biológico, sendo guiada por três eixos centrais: Velocidade de execução — fundamental para evitar a propagação do vírus entre galpões, lotes ou propriedades vizinhas; Segurança operacional e biosseguridade — evitando a exposição dos trabalhadores e a disseminação de partículas virais; E, compromisso com o bem-estar animal, dentro das diretrizes internacionais da OMSA.

Durante o exercício em Bastos, Hougentogler destacou a necessidade de adaptação dos métodos às realidades estruturais e produtivas locais. Métodos eficazes em granjas de frangos de corte nos EUA, com o uso de espuma por exemplo, podem demandar ajustes quando aplicados a estruturas piramidais elevadas ou sistemas californianos, como encontrados na avicultura de postura brasileira.

A lição deixada por Hougentogler é clara: a depopulação precisa ser rápida, tecnicamente viável, ética e operacionalmente segura — e, acima de tudo, precisa funcionar a campo. Para isso, ensaios práticos como o realizado em Bastos são essenciais para alinhar os planos nacionais de contingência com a realidade operacional do setor avícola. 

Descarte de carcaças: elo crítico da contenção

Tão importante quanto à eliminação das aves é o manejo sanitário das carcaças, etapa decisiva na quebra do ciclo epidemiológico. Para Gary Flory, especialista global em descarte de resíduos agropecuários e resposta a emergências zoossanitárias, o controle de um foco não termina com a depopulação — ele apenas começa.

O descarte de carcaças é um dos momentos mais sensíveis da contenção de um foco, e qualquer falha nesse processo pode permitir a persistência ambiental do agente infeccioso ou até sua reintrodução. Sua abordagem é clara: não basta eliminar as aves — é preciso eliminar o risco biológico por completo.

A compostagem, quando bem executada, representa uma solução sustentável e segura, especialmente em países de clima quente. No entanto, como destacado durante o exercício, sua implementação exige: Espaço físico suficiente; disponibilidade de materiais estruturantes adequados; Controle técnico rigoroso da temperatura, umidade e tempo de compostagem; E, capacitação prática dos operadores envolvidos.

Em Bastos, Flory coordenou a montagem de diferentes leiras compostáveis e destacou que a padronização técnica e a resposta logística são tão importantes quanto a escolha do método. Mais que uma tecnologia, o descarte é um processo crítico que exige decisões rápidas e com base científica. Para ele, um bom plano de resposta só é eficaz se contempla com igual importância as etapas de depopulação e de destinação final das carcaças.

Decisões difíceis em emergências: preservando o bem-estar sem comprometer a sanidade

Em emergências zoossanitárias, como focos de Influenza Aviária de Alta Patogenicidade, decisões difíceis precisam ser tomadas em nome da proteção da saúde coletiva. A depopulação rápida de plantéis infectados, embora represente desafios ao bem-estar individual das aves afetadas, tem como finalidade evitar consequências muito mais amplas: disseminação da doença, riscos à saúde pública, desestabilização da cadeia produtiva e prejuízos socioeconômicos para diversas comunidades.

Essa abordagem baseia-se no princípio de que a preservação do bem-estar coletivo e da biosseguridade deve orientar as ações emergenciais, desde que: A intervenção seja tecnicamente necessária e justificada; Os métodos adotados sejam reconhecidos por sua eficácia e ética; E, a execução ocorra com competência, celeridade e respeito, buscando sempre mitigar qualquer desconforto gerado às aves.

É com base nessa lógica que se aplica o conceito de “eutanásia com mínimo comprometimento ao bem-estar e máxima urgência” em cenários críticos. O propósito maior é proteger as aves saudáveis, os trabalhadores do setor, os consumidores e a sustentabilidade de toda a cadeia produtiva.

Nesse contexto, ética, ciência e sanidade animal convergem. E é também nesse ponto que os serviços veterinários oficiais se deparam com um dos maiores desafios morais de sua atuação: agir com rigor técnico, mas sem perder de vista a sensibilidade e a compaixão. A resposta a um foco exige, ao mesmo tempo, firmeza nas decisões e responsabilidade ética diante das consequências.

Biosseguridade operacional: o fator humano como elo crítico

 Outro ponto central é a importância de reforçar as medidas de biosseguridade não apenas sob a ótica estrutural, mas principalmente operacional. A eficácia das ações sanitárias está diretamente relacionada à adoção rigorosa de protocolos no dia a dia, à padronização de condutas, à capacitação constante das equipes e à vigilância ativa sobre práticas que reduzam os riscos de introdução e disseminação de agentes infecciosos.

Sem uma cultura sanitária institucionalizada, mesmo o melhor protocolo falha. Isso exige treinamento continuado, lideranças técnicas locais bem formadas, monitoramento sistemático de adesão aos procedimentos e o compromisso coletivo com as boas práticas são os principais escudos da defesa sanitária animal. Investir em biosseguridade comportamental e organizacional é tão essencial quanto manter estruturas físicas adequadas.

Protocolos realistas e ajustados à diversidade produtiva brasileira

 O exercício evidenciou que o Brasil dispõe de conhecimento técnico, capacidade institucional e profissionais preparados, mas também revelou a necessidade de ampliar o debate sobre viabilidade prática, custos operacionais e tempo de resposta. Durante o exercício, ficou evidenciado que muitos dos métodos previstos em planos internacionais ou nacionais de contingência não são, por si, universalmente aplicáveis em todos os contextos produtivos brasileiros, sobretudo no que diz respeito à logística, escalabilidade e custo operacional. Isso decorre da alta heterogeneidade entre regiões avícolas, seja quanto à densidade populacional, infraestrutura, capacidade de resposta ou acesso a insumos e tecnologias.

O município de Bastos, por exemplo, apresenta altíssima densidade avícola, com estabelecimentos compostos por dezenas de galpões na mesma unidade produtiva. Nesse contexto, o controle sanitário requer operações coordenadas, de grande escala e com elevada exigência logística, que muitas vezes extrapolam o escopo das estratégias tradicionais. A complexidade estrutural dos estabelecimentos exige que os planos de contingência considerem estratégias operacionais específicas, com escalonamento de ações, controle rigoroso de acessos, estrutura de biosseguridade reforçada e protocolos integrados entre granjas vizinhas.

Em um cenário real de um foco, a capacidade de resposta rápida é crucial para mitigar riscos e proteger o plantel nacional. Alguns métodos testados, embora validados internacionalmente, demandam estruturas que podem não estar disponíveis em todas as propriedades, especialmente nas de médio e pequeno porte. Esse ponto técnico não reduz o mérito dos protocolos existentes, mas abre espaço para aprimoramento contínuo, com foco em soluções mais acessíveis, seguras e eficientes. Portanto, torna-se indispensável a regionalização e escalonamento dos protocolos, considerando: porte e perfil da granja; capacidade local de resposta; recursos disponíveis; e dinâmica de contato entre unidades produtivas.

Como ponto positivo, o evento cumpriu seu papel de promover aprendizado, engajamento e avaliação criteriosa dos procedimentos. Como ponto de atenção, deixou clara a importância de investir em: Métodos alternativos e complementares de depopulação; Protocolos adaptáveis às diferentes realidades do país; Planos de contingência realistas, escalonáveis e viáveis; Infraestrutura regional de apoio rápido e seguro; E, capacitação operacional contínua e cultura de biosseguridade.

 Alternativas operacionais diante de cenários complexos

Diante da crescente complexidade dos cenários sanitários globais, torna-se oportuno amadurecer o debate técnico sobre abordagens que, embora ainda alvo de diferentes níveis de aceitação, têm se mostrado relevantes em determinados contextos epidemiológicos. O exercício realizado em Bastos evidenciou que não há solução única ou universal, e que a adoção exclusiva de protocolos homogêneos pode limitar a efetividade das ações, especialmente frente a realidades operacionais diversas.

Algumas metodologias adotadas em outros países, como o “Ventilation Shutdown Plus” (VSD+), já são autorizadas por autoridades sanitárias como o USDA para cenários extremos e emergenciais. Ainda que seu uso demande cautela e análise criteriosa, pode representar, em determinadas situações, uma resposta alternativa e tecnicamente viável diante de alta densidade populacional e restrições logísticas. A discussão sobre sua aplicabilidade deve considerar a urgência sanitária e o equilíbrio entre mitigação de riscos e bem-estar animal.

Da mesma forma, a vacinação estratégica em regiões de maior vulnerabilidade, quando associada a programas de compartimentalização reconhecidos pela OMSA, merece ser considerada com maior maturidade técnica. Quando bem planejada e integrada a sistemas robustos de vigilância, não representa renúncia à erradicação, mas sim uma ferramenta adicional de resposta sanitária adaptada à diversidade produtiva e territorial do Brasil.

A regionalização e a compartimentalização podem ser compreendidas como avanços na gestão sanitária. Ao reconhecer realidades distintas e fortalecer o conceito de biosseguridade segmentada, é possível alcançar maior agilidade, coerência e previsibilidade no enfrentamento de focos. Estruturas auditáveis, com barreiras sanitárias eficazes, contribuem para respostas mais estratégicas e menor impacto econômico, sem comprometer a segurança sanitária nacional.

Ampliar esse debate — fundamentado em evidências, experiências práticas e diálogo interinstitucional — é essencial para o fortalecimento do sistema de defesa agropecuária. Mais do que escolhas isoladas, ciência, sanidade, bem-estar animal e pragmatismo devem atuar de forma complementar, convergindo em um modelo sanitário moderno, ético e resiliente, capaz de responder com eficácia aos desafios complexos da produção animal contemporânea.

 Da teoria à prática: o compromisso que Bastos nos impõe

 O exercício realizado em Bastos/SP não foi apenas um treinamento técnico — foi um chamado à maturidade sanitária que o país precisa consolidar. Ele mostrou que planos de contingência só ganham sentido quando saem do papel e funcionam em campo, sob pressão, com tempo limitado e recursos finitos.

Depopular e descartar, quando necessário, não são meras ações técnicas: são decisões complexas que envolvem saúde coletiva, bem-estar animal, impacto econômico e responsabilidade ambiental. Exige ciência aplicada, protocolos exequíveis, preparo institucional e ética operacional.

A realidade brasileira — marcada por grande diversidade estrutural e desigualdade regional — impõe a adoção de respostas flexíveis, escalonadas e adaptadas às condições locais, sem abrir mão da segurança sanitária. Ao mesmo tempo, exige o fortalecimento de uma cultura de biosseguridade que vá além das normas e se consolide no dia a dia das propriedades.

O futuro da sanidade avícola no Brasil dependerá de nossa capacidade de antecipar riscos, respeitar diferenças regionais, agir com base em evidências e manter o bem-estar coletivo como norte estratégico. Bastos não foi o ponto final — foi o ponto de partida. Cabe agora ao setor produtivo, aos serviços oficiais e à ciência percorrerem esse caminho com coragem técnica, clareza ética e compromisso coletivo.

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