Exportações de produtos agrícolas do Brasil e dos demais países do Mercosul correm riscos de enfrentar mais barreiras em mercados desenvolvidos, em decorrência da onda de “precaucionismo” que tende a se impor no comércio internacional na esteira da pandemia do novo coronavírus.
A suspensão pela União Europeia do uso da vacina da AstraZeneca contra a covid19, no começo do mês, acendeu mais um sinal de alerta em alguns segmentos do agronegócio, já que foi encarada como um desdobramento dos esforços da Europa de reforçar seus controles mesmo sem esperar que eventuais riscos de um determinado produto sejam comprovados.
Pascal Lamy, ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), foi um dos primeiros a alertar, no ano passado, para o que chamou de uma migração do “protecionismo” para o “precaucionismo”, que afetará especialmente países em desenvolvimento. Não são mais apenas as empresas que os governos vão proteger com tarifas de importação contra a concorrência internacional, mas também os cidadãos e consumidores contra diferentes riscos.
Para Pedro de Camargo Neto, um dos principais especialistas brasileiros em comércio agrícola, no estado emocional em que os países se encontram com a crise sanitária, o risco para as exportações do setor aumenta. Nesse cenário, afirmou ele, “o Brasil está fragilizado, com credibilidade baixa e pressões contrárias ganhando força’’.
“Carregamentos de carnes brasileiras foram barrados na China sob alegação, sem comprovação científica, de traço de covid-19 em embalagens, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) não aponta esse tipo de risco’’, disse Camargo Neto.
O embaixador Pablo Ariel Grinspun, representante em Bruxelas da presidência pro tempore da Argentina no Mercosul, não faz relação entre suspensão de vacinas, que considera excepcional, com o princípio de precaução incluído no acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul.
Mas o risco de novas barreiras é claro. “Estamos prevendo que poderá ocorrer um endurecimento na Europa dos controles sanitários e regulatórios às importações procedentes de terceiros países”, afirmou o embaixador ao Valor. A UE elabora, por exemplo, regulamentação para proteger as florestas tropicais. Quer incentivar o consumo de commodities de cadeias de abastecimento livres de desmatamento e, assim, combater o “desmatamento importado”. Para analistas, isso pode atingir a entrada de certas carnes, soja e outros produtos que forem considerados suspeitos.
O professor Maximiliano Mendes-Parra, da London School of Economics, que dirigiu um estudo de impacto do tratado UE-Mercosul, observou que o acordo birregional vai, em geral, beneficiar as exportações do Mercosul para a UE, mas que “existem, é claro, outras complicações”.
Parra realçou que a UE está prestes a introduzir “carbon border adjustments”, segundo os quais exportadores que não puderem certificar o teor de carbono, ou que diretamente estão excedendo determinado nível, terão que pagar uma taxa baseada no carbono embutido no produto. Isso afetará potencialmente todos os países em muitos setores.
“A covid apresenta uma questão para as importações do Mercosul’’, afirmou Parra. ‘Muitos países, e não apenas da UE, estão restringindo as exportações de produtos médicos, como vacinas. Outros, como a China, estão restringindo suas exportações de certos minerais usados em componentes usados em equipamentos militares dos EUA, por exemplo”.
Nos EUA, as barreiras comerciais para produtos agrícolas têm sido – e devem continuar sendo – erguidas com picos tarifários, cotas-tarifárias ou medidas fitossanitárias, diz o professor Aluisio de Lima-Campos, da American University, em Washington (EUA). “A novidade é que o governo Biden tem como prioridade o meio ambiente, o que gera uma sensibilidade maior deste governo para itens agrícolas cuja produção, na sua percepção, afete negativamente o sistema ambiental”.
Nesse cenário, Maximiliano Mendes-Parra considera que, para o Mercosul, há muitos pontos de preocupação – e que o princípio de precaução “é o menor dos problemas’’. O fato, disse Geraldo Vidigal, professor da Universidade de Amsterdam (Holanda), onde leciona Direito do Comércio Internacional e Direito Internacional Público, é que a segurança de um produto, para ser comercializado, precisa ter sido demonstrada às autoridades. “No comércio internacional, isso gera duas questões”, afirmou. “Primeiro, quais padrões aplicar para decidir o que é seguro. Segundo, em quais autoridades se confia para atuar no controle do cumprimento desses padrões”.
A questão do agro é algo distinta, acrescentou. “Não se trata de a UE entender que os padrões de produção exigidos pela legislação brasileira não são suficientemente seguros. Trata-se, muitas vezes, de não haver confiança mútua nas instituições de controle sanitário. Essa falta de confiança só se resolve parcialmente com acordos de reconhecimento mútuo, que dependem de as agências sanitárias envolvidas confiarem umas nas outras”, disse.
“Quando ocorre um escândalo interno, como o da Operação Carne Fraca no Brasil, é muito difícil exigir que a agência externa continue a confiar em mecanismos de controle que o nosso próprio Judiciário está tratando como suspeitos. Isso acontece até dentro da UE”, disse ele. “A confiança dos parceiros comerciais não é só de que, no dia a dia, as instituições de controle farão seu trabalho de fiscalização. É também a confiança das autoridades estrangeiras de que, diante de evidências de problemas sanitários, as autoridades do parceiro vão resolvê-los”.
Com anos de experiência na Europa, Jogi Humberto Oshiai, do escritório FratiniVergano European Lawyers, aconselha o agronegócio brasileiro a analisar cuidadosamente o princípio de precaução, o pacote verde europeu e outros temas relacionados a uma agricultura sustentável. “A aplicação dos princípios de precaução não pode ser admitida pela parte brasileira como mais uma forma de protecionismo adotada pelos nossos parceiros comerciais. Isso iria contra os nossos esforços em busca de desenvolvimento sustentável e progresso econômico”, disse.