A gripe aviária atingiu novos cantos do globo e se tornou endêmica pela primeira vez em algumas aves selvagens que transmitem o vírus para aves domésticas, de acordo com veterinários e especialistas em doenças, que alertam: é um problema para sempre.
A Reuters conversou com mais de 20 especialistas e agricultores em quatro continentes. Eles disseram que a prevalência do vírus na natureza sinaliza que os surtos recordes atualmente registrados não diminuirão tão cedo nas granjas, aumentando as ameaças ao suprimento mundial de alimentos. Também alertaram que os avicultores devem ver a doença como um sério e permanente risco, em vez de concentrar os esforços de prevenção apenas na Primavera, durante as estações de migração das aves selvagens
Os surtos do vírus se ampliaram nas Américas do Norte e do Sul, Europa, Ásia e África, independentemente do calor do verão ou do frio do inverno, desde que uma cepa (geneticamente assemelhada a casos na Europa e na Ásia) chegou aos Estados Unidos no início de 2022.
Na quarta-feira (15), Argentina e Uruguai declararam emergências sanitárias nacionais depois que autoridades confirmaram as primeiras infecções nos países. A Argentina encontrou o vírus em aves selvagens, enquanto cisnes mortos no Uruguai testaram positivo.
Os preços dos ovos bateram recordes depois que a doença no ano passado eliminou dezenas de milhões de galinhas poedeiras, colocando – no mundo – uma fonte básica e barata de proteína fora do alcance de pessoas com menor poder aquisitivo. Isto, num momento em que a economia global sofre com as altas da inflação.
As aves silvestres são as principais responsáveis pela disseminação do vírus, segundo especialistas. Aves aquáticas, como patos, podem transmitir a doença sem morrer e introduzi-la nas aves através de fezes contaminadas, saliva e outros meios.
Falham os esforços dos avicultores para proteger seus plantéis
Nos Estados Unidos, a Rose Acre Farms, a segunda maior produtora de ovos do país, perdeu cerca de 1,5 milhão de galinhas no local de produção de Guthrie County, Iowa, no ano passado, embora qualquer pessoa que entrasse nos galpões fosse obrigada a tomar banho primeiro para remover qualquer vestígio de presença do vírus, disse o presidente-executivo Marcus Rust.
Uma granja da empresa em Weld County, Colorado, foi infectada duas vezes no espaço de seis meses, matando mais de 3 milhões de frangos, revela Rust. Ele acha que o vento soprou o vírus de campos próximos onde os gansos defecaram.
“Fomos pegos de surpresa”, lamenta. “É de arrancar os cabelos”.
Os Estados Unidos, Grã-Bretanha , França e Japão estão entre os países que sofreram perdas recordes de aves no ano passado, deixando alguns produtores impotentes.
“A gripe aviária infecta até mesmo novas granjas, com equipamentos modernos e sem janelas. Então, tudo que podemos fazer agora é pedir a Deus que evite um surto”, disse Shigeo Inaba, que cria frangos na província de Ibaraki, perto de Tóquio.
Anteriormente, no Hemisfério Norte, a avicultura era considerada sob maior risco apenas na Primavera, devido ao ciclo migratória das aves selvagens. Agora, os níveis crescentes do vírus em uma ampla gama de aves aquáticas e outras aves selvagens colocam a avicultura sob alto risco durante todo o ano, afirmam especialistas.
“É uma nova guerra”, diz Bret Marsh, veterinário do estado americano de Indiana. “É, basicamente, uma vigília de 12 meses.”
Em um sinal de que a ameaça deve persistir, Marsh está buscando fundos dos legisladores de Indiana para contratar mais um veterinário avícola e um especialista em saúde de aves. Indiana perdeu mais de 200.000 perus e outras aves no ano passado, enquanto o total de mortes nos EUA chega a 58 milhões de aves, segundo dados do governo, superando o recorde anterior de 2015.
Normalmente, o vírus é mortal para as aves. Por isso, lotes inteiros são abatidos quando até mesmo apenas uma ave testa positivo.
As vacinas não são uma solução simples: elas podem reduzir, mas não eliminar a ameaça do vírus, dificultando a detecção de sua presença no lote. Ainda assim, o México e a UE estão entre os que estão vacinando ou considerando vacinar.
PROBLEMA GLOBAL
Aves selvagens espalharam a doença a maior distância e mais amplamente por todo o mundo como nunca, provavelmente carregando quantidades recordes do vírus, observa Gregorio Torres, chefe do departamento de ciência da Organização Mundial de Saúde Animal com sede em Paris, um grupo intergovernamental e autoridade global em doenças animais. A forma clássica do vírus mudou para uma forma provavelmente de maior transmissibilidade, disse ele à Reuters.
“A doença veio para ficar, pelo menos a curto prazo”, afirma Torres.
Torres não pôde confirmar que o vírus seja endêmico em aves selvagens em todo o mundo, embora outros especialistas tenham dito que é endêmico em certas aves e lugares, como nos Estados Unidos.
Embora o vírus possa infectar pessoas, geralmente aquelas que têm contato com aves infectadas, a Organização Mundial da Saúde afirma que o risco para os seres humanos é baixo.
A forma do atual vírus circulante vem infectando uma gama mais ampla de aves selvagens do que as versões anteriores, incluindo aquelas que não migram longas distâncias, disse David Suarez, diretor interino do Laboratório de Pesquisa de Aves do Sudeste do governo dos EUA na Geórgia.
Essas infecções de aves “residentes” acabam ajudando o vírus a persistir ao longo do ano, fato que não ocorria anteriormente, disse ele.
Os abutres negros, que habitam o sul dos Estados Unidos e permaneciam imunes anteriormente, estão agora entre as espécies que sofrem, cita David Stallknecht, diretor do Southeastern Cooperative Wildlife Disease Study da Universidade da Geórgia.
O vírus também infectou mamíferos como raposas, ursos e focas.
“Todos temos que acreditar em milagres”, disse Stallknecht, “mas realmente não consigo visualizar um cenário em que isso desapareça.”
CRUZANDO FRONTEIRAS
Altos níveis de vírus em pássaros como azul-petróleo e patos que migram longas distâncias, ajudaram a espalhar o vírus para novas partes da América do Sul, menciona Stallknecht. Países como Peru , Equador e Bolívia relataram seus primeiros casos nos últimos meses.
O Equador impôs uma emergência sanitária animal de três meses em 29 de novembro, dois dias após a detecção do primeiro caso, comunicou o Ministério da Agricultura e Pecuária do país. Até agora, mais de 1,1 milhão de aves morreram, disse o ministério.
As infecções no Uruguai e na Bolívia colocam a doença perto do Brasil, maior exportador mundial de frango, que nunca confirmou um caso. O ministro da Agricultura do Brasil, Carlos Favaro, disse na quarta-feira que o país investigou três casos suspeitos, mas os resultados dos testes deram negativo.
“Todos estão focados em impedir que a gripe chegue ao nosso país”, disse Gian Carlos Zacchi, que cria frangos para a Cooperativa Aurora em Chapecó, Santa Catarina.
Alguns especialistas suspeitam que a mudança climática pode estar contribuindo para a disseminação global, alterando os habitats das aves selvagens e as rotas migratórias.
“A dinâmica das aves selvagens mudou, e isso permitiu que os vírus que vivem nelas também mudassem”, disse Carol Cardona, especialista em gripe aviária e professora da Universidade de Minnesota.
Os agricultores estão tentando táticas incomuns para proteger as aves, alguns usando máquinas que fazem barulho para assustar as aves selvagens, disseram especialistas.
Em Rhode Island (EUA), Eli Berkowitz, produtor de ovos e executivo-chefe da Little Rhody Foods, borrifou o desinfetante Lysol em cocô de ganso em uma passagem de sua granja, caso contivesse o vírus. Ele também limita as visitas à granja, a mais tradicional precaução adotada pelo setor.
Berkowitz acrescenta que vem se preparando para março e abril, quando a temporada de migração representará um risco ainda maior para as aves.
“É melhor você apertar o cinto e preservar sua querida vida”, disse ele.
(Reportagem de Tom Polansek em Chicago. Reportagem adicional de Yuka Obayashi em Tóquio, Sybille de La Hamaide em Paris, Ana Mano em São Paulo, Alexandra Valencia em Quito, Maximilian Heath em Buenos Aires e Victor Borges em Brasília; edição por Caroline Stauffer e Claudia Parsons